“Como as mudanças climáticas podem afetar a vida nas aldeias”
Um grupo de trinta índios aguardava no centro da aldeia
Ngoiweré, no Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso. O clima do encontro foi tenso, apesar de tanto tempo passado, a tensão do momento ainda permanece... E foi assim; com os semblantes fechados, os índios receberam “os brancos” para conversar sobre um
tema delicado no parque indígena: o aquecimento global. A reunião aconteceu em
um local construído no centro da aldeia para reuniões e festas. Mas o clima, na época, não estava tão festivo.
Há anos, o
grupo teve o privilégio de visitar a mesma aldeia durante uma dessas festas
para comemorar a construção de novas casas. Os índios estavam igualmente
pintados, porém muito mais receptivos. Mulheres e crianças brincavam e cantavam
pelo mesmo pátio. Um clima bem diferente daquela manhã. Apenas os líderes,
guerreiros e velhos iriam participar da reunião com os "brancos". A maioria armada com
bordunas, uma espécie de porrete de madeira, e arcos com flechas de pontas
venenosas.
"Vamos começar", diz o cacique Wanrumbatxi
quebrando o silêncio. Um dos velhos da aldeia levanta e faz um longo discurso
em suyá, a língua dos índios kisedjês. Winti, o presidente da associação, traduz a
fala. Ele faz um sinal de positivo com a cabeça, mas continua com os olhos
fixos no chão em um sinal claro de respeito. "Árvore é igual gente. Vocês
não sabem, mas eu converso com elas e as árvores cantam para mim. Faço isso
porque sou um pajé e tenho essa poder", diz o Toni, um senhor de cerca de
70 anos. "Os brancos não sabem que a floresta é viva e matam tudo sem dó.
E deixam os espíritos com muita raiva. Quando vejo as matas verdes, sei que as
árvores estão felizes, mas nas terras dos brancos já destruíram tanta coisa e
espantaram tantos espíritos que a natureza está brava", afirma. "É
por isso que tem furacão nas cidades de vocês. Isso é a natureza brava". A
fala do velho é recebida com muita seriedade por todos os índios. Eles se
agitam e começam a conversar em suyá. É difícil para as pessoas das cidades
compreenderem a lógica dos índios e o quanto a recíproca também é verdadeira.
Os jovens e as lideranças bem articuladas que aparecem na
mídia são pequenas exceções no mundo dos índios. Eles estudam, cursam
faculdades e muitos fazem até pós-graduação. Mas o grosso da população do
Xingu, e de outras terras indígenas, é formada por velhos, mulheres e crianças
que quase não falam o português. Para muitos desses índios o planeta não é
redondo. A grande maioria nasce, cresce e morre sob a cosmologia de sua etnia.
Uma visão de mundo na qual a nossa geografia não tem tanto valor quanto os
mitos e lendas de seus antepassados. Para esses índios, o mundo pode ser
dividido em muitas camadas habitadas por vários tipos de seres míticos, mágicos
e animais que tomam a forma de humanos.
Continuo calada, mas o velho olha para mim e pergunta se
concordo com ele. “Os brancos sabem que
muitos cientistas falam – de uma forma diferente – a mesma coisa. Que a
destruição que “os brancos” fazem ao construir as cidades, gerou consequências
muito perigosas. E que a poluição dos carros e das indústrias está afetando o
equilíbrio da natureza. O velho sorri. A
pergunta é se os índios já perceberam alguma mudança no clima e no tempo em
suas aldeias. Cincos índios começam a falar ao mesmo tempo. Eles reclamam das
fazendas vizinhas. O pajé interrompe a todos com um gesto de mãos e volta a
discursar.
O limite das terras dos kisedjês é cercado por milhares de
hectares de pastos e soja. As poucas áreas verdes que restam estão dentro das
reservas indígenas. Outro problema que os índios enfrentam são ocupações
ilegais de suas terras. Muitas das aldeias que estão nas margens do Parque já
foram invadidas por grileiros. Os índios conseguiram expulsar os ladrões de
terras, porém a floresta dessas áreas ainda não se recompôs da degradação. A
aldeia Ngoiweré, onde acontece a reunião, é um exemplo dessa situação. O chão
batido e a ausência de árvores altas denunciam a destruição recente. Para caçar
os kisedjês precisam percorrer quilômetros de barco dentro dos rios do Xingu.
Winti começa a traduzir a fala do pajé.
"Aprendemos a plantar com os nossos antepassados. E até
hoje, vivemos da mesma maneira", diz o pajé. "A gente só planta
quando o murici floresce e a primeira estrela surge no céu. Daí vem o tracajá e
coloca seus ovos nas praias e as cigarras cantam. Mas tem dois anos que a gente
espera e a chuva não vem. As águas do rio não baixam e os tracajás não colocam
ovos", afirma. "As sementes secam e perdemos nossa colheita. O
resultado é que ficamos sem mandioca, e sem biju". A comida é uma espécie
de tapioca feita pelas mulheres e ainda é a base da alimentação dos 25 mil
índios que vivem Xingu. A grande maioria sobrevive na região apenas do que
planta e colhe. Os índios passam a metade do tempo de suas vidas trabalhando
nas roças e na produção do polvilho para fabricar o biju. A atividade une o
grupo. As mulheres plantam, as velhas cuidam das sementes, os homens ajudam no
transporte, na fabricação e armazenamento do polvilho. Quando perdem uma
colheita as roças são abandonadas e todas essas atividades são interrompidas.
Winti conta em voz alta que os kisedjês começaram a compram arroz
industrializado para que as aldeias não enfrentem a fome.
Além de alterar o modo de vida do Xingu, a comida
industrializada pode deixar os índios doentes. "Os índios não estão
acostumados com o sal e o açúcar", diz Kamami Trumai que também é chefe da
Funai na região. "Quando precisa ir para as cidades comprar comida, a
maioria compra açúcar e sal, coisas que não tinha aqui antes. O resultado é um
aumento nos casos de hipertensão e diabete". A dependência de dinheiro
para adquirir alimentos é o terceiro grande problema que uma aldeia enfrenta
quando perde a sua roça. Para comprar arroz, os índios passam a sobreviver do
comércio de artesanato e do auxílio do governo federal, por meio de programas
como Bolsa Família. "O sol está mais quente também. É impossível andar
descalço, ou ficar sem roupa", diz Kamani.
Um avião começa sobrevoar uma área próxima à aldeia. "É
para jogar veneno na soja. O piloto fica lá durante todo o mês, espirando
veneno de um lado para o outro e fazendo barulho de besouro", diz o
cacique. "As fazendas estão cada vez mais próximas, dessa vez cortaram até
o limite da placa que indica o começo do Parque", diz. "O mais triste
é que estamos passando fome, ao lado das lavouras de arroz de vocês".
Winti e o cacique começam a contar do avanço da agricultura que hoje cerca toda
a parte Sul do Parque do Xingu.
«Há quinze anos, a gente ia para a cidade de Canarana e no
caminho eu só via árvores. Agora, só têm pasto e soja", diz Winti. A fala traz
à mente uma cena que marcou a viagem para a aldeia. São mostrados dez
quilômetros entre centenas de pontos de irrigação de um campo de arroz. A
imagem vai além do horizonte e dava uma noção exata do alcance do agronegócio
em volta do parque indígena. No centro da plantação, está o silo da marca de
arroz que é vendido em São Paulo. Segundo dados do IBGE restam apenas 35% das
matas originais do Xingu. A floresta na região concentra-se no parque, que em
imagens de satélite pode ser reconhecido como um grande marco verde encravado
no mapa do Brasil.
"Ficamos bravos quando falam de aquecimento global,
porque sabemos que é culpa do que está acontecendo é dos brancos. Vocês
cortaram todas as árvores, queimaram tudo e até hoje jogam veneno na terra. E
somos nós que ficamos sem comida. E agora, chegam aqui e vem nos dizer que a
culpa é do carbono", diz Manti.
A palavra carbono gera uma nova onda de
irritação entre os índios. Muitos se levantam e começam a falar alto.
"Carbono, o que é isso? Fumaça? Não gosto dessa palavra", diz o
cacique. Um dos maiores problemas dos índios em relação ao aquecimento global
não é compreender as suas causas e consequências, mas sim, lidar com linguajar
técnico. Para tentar minimizar essa tensão, o Instituto Socioambiental (ISA),
uma das ONGs que atua com os índios do Xingu, vem promovendo reuniões para
debater as mudanças climáticas nas aldeias. Em uma delas, alguns técnicos e
antropólogos do ISA usaram balões na forma do planeta Terra. Foi uma tentativa
de mostrar aos índios como vemos o mundo, que para nós, é redondo. Mas, mesmo
nessas reuniões falar termos como gás carbônico gera muitas discussões. Em
muitas aldeias a palavra está praticamente proibida.
Apesar das
dificuldades com os termos científicos, os índios sabem reconhecem a dimensão
do problema que são as mudanças climáticas. "Tenho medo do futuro. Nós
preservamos as nossas florestas, elas estão todas aqui, mas mesmo assim parece
que não vamos conseguir garantir nosso modo de vida", diz Manti.
"Precisamos encontrar um caminho para que nossos netos não passem
fome". Os índios ficam em silêncio e o cacique finaliza a reunião acaba.
Somos gentilmente convidados a ir embora. Quando o assunto é aquecimento
global, é difícil ser bem vindo no Xingu.
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